terça-feira, 28 de setembro de 2010

AS ETERNIDADES INSTANTÂNEAS

Ver, eis a decisão.

Mas confesso estar deveras preocupado. Meu Galo despencando do poleiro, talvez por minha culpa. Afinal, sorte no amor. Assim interpreto. Pois o que uma Chapeuzinho estaria fazendo ao lado do Lobo, num terceiro encontro de dias consecutivos e indo para uma segunda sessão de outro documentário brasileiro?
Definitivamente, meu time vai pra segunda divisão caso persista minha sorte coronariana. Não há dúvidas! Qual sacrifício, pois, escolherei sofrer: a heresia futebolística ou uma paixão natimorta? Não decido, mas jogo com o destino e flerto com a sinceridade: "Boneca, desta vez não ganharemos convite para entrar." Mas a fé inabalável da Chapeuzinho me assusta: "Quem sabe você não consegue com outro amigo famoso?" Fé ou sua ironia raio-x da minha falastrice: "Olha ali dentro, aquele cara do Sportv!" Olho. É o Smeagol. Ai, meus pecados!
Mas eis que vem a teoria infalível de meus amigos rocinantes querendo se comprovar: para toda Lei de Murphy, há uma reação contrária e benévola: a Lei de Joaquim. Pois é, Joaquim aparece travestido de minha amiga, Andrea Capella, que se achega a mim depois do meu aceno. "Mauro, você veio ver meu curta!"
Mas o plano de Joaquim não cobre minha manezice: "Seu curta?" Pronto, a gafe dada de bandeja pra meu esquartejamento mais que justo. Dá pra se notar o quanto sou um cineasta-cinéfilo engajado. E tá lá a Andreinha, num sorriso sapiente. "Você veio pra ver futebol, né? Tudo bem. Mas tá aqui o convite pra você." Sem breguice, fiquei emocionado. E a farsa sobrevivia. Até quando, não sei. Rogo que até depois da Chapeuzinho se ver livre dos doces de sua cestinha.
É, a Andrea tinha razão. Fui lá pra ver 'Mario Filho'. Mas estou cá pra falar do curta dela. Quer dizer, do que ele me suscitou. Afinal, além de cineasta vadio, sou péssimo crítico. E o documentário do Mario Filho foi um gol contra. Dou azar até em jogo dentro de cinema. Com a fotografia mais confusa que o meio campo do meu time, a narrativa mais insossa que a desculpa do LuxemBurro diante de mais uma derrota do Galo, e a glorificação masturbatória tão sacal quanto a que Kalil (infelizmente, presidente do meu Galo) goza de si próprio, o filme só fica bom quando termina. Não, não é uma piada. Nos créditos finais,  gol de placa, com um repente dos entrevistados puxando cada qual o Mario Filho pro teu patriarcado clubístico. Deixasse só os créditos finais (com créditos e tudo), e essa obra se tornaria o curta mais ousado, divertido e genial do Festival.
Pois é. 'Instantâneos'.  A história do último fotógrafo de bares na Lapa. Tá assim, na sinopse. Mas o filme, de instantâneo, não tem nada. É longo, um curta eterno. Não falo da duração dos planos. Nada disso. Mas o fruir dele diz algo do tempo. Algo que não escuto, bem verdade. Certos filmes têm uma diegética pouco porosa pra que minha muito gordurosa intelectualidade consiga atravessar. Simplesmente, não alcanço o conceito. Se muito, o persigo. Mesmo assim, sei lá, alguma coisa mexeu cá dentro. Seja porque estou do lado de uma pessoa pela qual desejo muito que seja, digamos, porosa aos meus escassos, mas sinceros encantos. Ou talvez por outra pessoa que encontrei, duas vezes, antes do Odeon.
Uma da tarde, fui pra comprar os ingressos (que claro, não consegui) e aproveitar pra pegar meu yakissoba dominical no chinês lá perto do cinema. Santo yakissoba, baratinho e rende pra janta. Mas, torto que sou, acabei passando pela Senador Dantas. Rua deserta, a não ser por uma moradora de rua, sentada no chão e encostada na parede de um prédio. Uma faixa cuidadosamente amarrada na cabeça e um batom vermelho passado sem borrões. Segura um canudinho, como um microfone. Passo por ela. Uma entrevista com alguma Hebe Camargo imaginária: "Eu cheguei na casa dele e ele achava que eu tinha que dar."
Continuei caminhando. Quase gargalhando. Mas um riso com verniz de choro. O rosto daquela senhora, de uma harmonia e calma de Sidarta Gautama me impressionou. Quem era aquela mulher com cara de beata? Não, beata tem cara de louca. E aquela louca tinha cara de santa. Uma santa que trepava. Quais riquezas nos privava aquela mulher? E o fotógrafo lambe-lambe ali, revivendo em 24 instantâneos por segundo na tela do Odeon, me fazendo não entender completamente o filme, mas me entranhando de uma emergência afetiva absurdamente curiosa. Quem é esse fotógrafo que não mais caminha pela Lapa? Quem era aquela mulher, sentada na Senador Dantas, na mesma posição e cara, quando passei por ela pela segunda vez, às 3 horas da tarde? Quem é essa Chapeuzinho a meu lado,  e a quem rogo me conceder conhecê-la de novo pela primeira vez, num quem-sabe-quarto-dia? Somos sozinhos no mundo. O dente que dói em mim, só dói em mim, mesmo você sabendo da dor que já doeu no seu dente. Caminhamos pelo mundo solitariamente acompanhados. O outro. Quem é o outro? Meu tio vai chorar comigo a queda do meu Galo pra segundona. Quem é meu tio? Não sei. Mas quero chorar junto dele. Somos cada um, universo. Cada tempo, eternidades. Construímos pontes com o ar que nos separa do outro e damos um passo a frente, sempre em falso. E cada falso passo ao outro,  uma dança com o outro. Juntos, solitários. Universos paralelos que se encontram, pela geometria, só no infinito. Existe cinema após a morte?
Aperto a mão da Chapeuzinho.

Acho que estou precisando trepar.

Lobo Mauro 



3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Maurim, depois de ler suas eternidades instantâneas, percebi que não assistir aos filmes, assistir aos filmes errados, e não trepar, pode parecer aos mais sensatos uma grande loucura, mas tem dado às suas crônicas um sabor especial. E me faz querer, sendo bem egoísta, que a Chapeuzinho demore a ser devorada, tenha uma morte lenta, ou uma vida eterna ...

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  3. Sabiá! Mas que canto de cisne você quer pra Chapeuzinho, hein! Brigadim pelas palavras. De qualquer forma, terei que aprender teu trinado para, quem sabe assim, a Chapeuzinho parar de ficar pensando em algum Caçador chato e empata-foda.

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