domingo, 30 de setembro de 2012

A VERDADEIRA CINEFILIA

 
João da Luz, ou apenas luz para os amigos, sofria de um mal intermitente. De tempos e tempos sentia uma vontade incontrolável de ir ao cinema. Não sabia bem porque, mas o fato é que o falo, o seu é claro, só ficava duro no cinema.

Talvez isso tivesse uma origem distante na infância quando sua mãe o levava ao cinema toda segunda a tarde.  Lembrava do calor modorrento do subúrbio e os conselhos da mãe antes de cada sessão – não ponha todos os caramelos na boca, se não engasga. Me espere na saída, tenho um assunto a tratar e talvez atrase. E não esqueça, se teu pai perguntar, assisti ao filme ao seu lado. E dito isso, sumia na convulsão da rua enquanto ficava a imaginar o seu paradeiro. E assim, a tarde no Cine Marajá se misturava as vedetes do cinema e a uma angústia dos sumiços temporários da mãe.  Rita Hayworth acendia um cigarro lânguido enquanto sua mãe sumia na multidão, e as pernas da Virginia Lane cruzavam sobre o seu olhar de despedida.

Na adolescência já tinha tomado gosto pelas escapadelas matutinas cinematográficas e, sem que a mãe o levasse, sempre arranjava tempo para uma sessão ou outra. Era um refúgio da vida besta em que por um breve tempo podia ser tomado por grandes aventuras.  Sentia que era verdadeiramente possuído pelo cinema e que só recuperava seu verdadeiro e medíocre eu alguns minutos após a sessão. Caminhava pela zona norte como um herói capaz de vencer os infortúnios do mundo, até que lentamente o mundo ia entrando de volta ao corpo e a realidade ia se impregnando à pele.

Foi em uma sessão dessas que viu seu primeiro par de seios. E de novo, como no caso da mãe, essa lembrança se misturava a luz refletida na tela, e talvez, na aparição das tetas, teve o presságio de sua condição. Esperava na sua cadeira entre uma sessão e outra quando a moça que arrumava a sala se curvou na fileira da frente para catar algum resto. E ali, emoldurada pela tela ao fundo, conectando de alguma maneira os dois mundo, tela e sala, um botão aberto revelava o seio róseo, primeiro um e depois o outro. Passou um tempo vendo o filme em duas sessões, interligadas por aparições momentâneas de seios. Percebeu que ali, nesse vão entre a tela e a sala, havia uma fonte inesgotável de pulsações. E começou a procurar mais do que seios e logo foi percebendo em outros cinemas, outras sessões, outros bairros, mãos, pés, pernas, bocas, bundas, até que um dia seu corpo foi de encontro a outro, e sua língua pode tocar o céu da boca de outra mulher. Um passo para que o pau pudesse enfim viver a glória rápida dos virgens e se dessacralizar no espaço sagrado de uma vagina. Depois daquele filme nunca mais foi o mesmo, e sentiu que a possessão comum após o cinema perdurou durante um bom tempo, de forma que parte do herói ficava guardado dentro de si.

Hoje vive essa busca, de cinema em cinema, filme em filme, por uma mulher inteira que dê um sentido total a sua existência. Seria sua última sessão de cinema,  e quiçá da vida. Sua vida amorosa se resume a esses fragmentos de filmes, e de mulheres, cada um encravado em algum lugar de seu corpo, tatuagens luminosas de gozos, paixões, desilusões e amores. Sua vida foi uma genealogia cinematográfica sexual e sentimental - no Roxy amou perdidamente, no Palácio pode ser um verdadeiro canalha, no Métro experimentou longos anos de uma paixão platônica, no Imperator o primeiro amor, no Veneza a primeira desilusão. Enfim, de fotograma em fotograma, fez-se homem.

Roberto Robalinho

FUGA DO RYO DE JANEYRO


Desvirginar no Festival com Spike Lee e John Carpenter em NY, oh yeah! E fuga é um tema recorrente nos 'Verão em Red Hook' e 'Fuga de Nova York'. Flik Royale, o garotinho moicano do filme do Spike Lee já chega no Brooklyn querendo partir. Um dos personagens ainda acha estranho que o pastor, avô do Flik, tenha vindo do sul para NY, cidade cada vez mais cara. E cá penso, olhando para meu comprovante de 18 reais do ingresso, que Ryo de Janeyro tá pra lá da ponte do Brooklyn. E o Verão de Spike segue agradavelmente Lee, muito mais leve que esse outono invernal carioca, quando... putz! Não vou falar, vejam. Se não agora, quando estrear no circuito comercial.

Saí atordoado do filme, com sede de algo mais leve, mais fofo, pra abrandar os corações. E, oras, na falta de Chuck Norris, nada mais calmante do que Snake Plissken dando porrada!
Por sorte, encontrei o Ursinho Ted na saída do cinema. Coincidência das boas, teria companhia. Sei que dá dó gastar uma inteira naquela meia-sala do Botafogo 3, mas caramba!, trata-se de um dos meus ícones adolescentes televisivos. Entramos na saleta quase meia-noite e o Ted já solta: 'Dá só uma sacada: só tem punheteiro nerd!'. Concordei meneando a cabeça acompanhada de uma coçadela inconsciente do saco.

Agora, o que fugiu mesmo nas duas sessões foi o som. Snake sibiliva. Poxa, o Guia é de Cego mas nem o Ted conseguia escutar. E a telinha da saleta, naquela exibição escura de DVD, tornava a Nova York sitiada grandiosa da minha memória menor que a Ilha Fiscal.  Nisso, olho para o lado. Ted estava... estava... se masturbando feito mulher? 'Que foi?', Ted bradou mais alto que o The Duke, 'nunca viu um eunuco de pelúcia tirar uma bronha?'. Ergo os ombros inocentemente. E Ted me segreda no ouvido: 'Esse Kurt Russel até que tem uma bunda gostosa, hein!'. Olhei no fundo dos olhos de plástico de Ted: resplandeciam sinceridade. Foquei então no decote grande angular de Adrienne Barbeau, que fez cabelo e bigode da minha libido, e pensava: Flik Royale é mais marrento que Snake Plissken e Neymar juntos.

Lobo Mauro


sábado, 29 de setembro de 2012

NÃO EDITORIAL 2

O trança-pés desenfreado da Rua Voluntários da Pátria não deixa dúvidas: é tempo de Festival de Cinema no Rio de Janeiro. E com ele, um frenesi toma conta da cidade, todos em busca do melhor filme de todos os tempos da última semana. Para você que não sabe o que assistir nesse emaranhado de filmes, o blog Guia de Cego vai ajudá-lo a permanecer na dúvida. Após um ano de interregno, os quatro cronistas mais improváveis do Rio de Janeiro estão de volta para breves relatos sobre filmes e tudo aquilo que está além deles.

As belas coxas da atriz venezuelana, o acepipe degustado na entrada do cinema ou a estridente gargalhada do careca da segunda fileira. Dos coletivos abarrotados nas idas, ao metrô solitário das voltas. Os temas e cenários das resenhas serão os mais diversos, mas terão como denominador comum o despojamento e bom humor. Mais que assistir ao filme é preciso vivê-lo. Então, ergam vossas bengalas e deixem-se tropeçar nos percalços do caminho.