domingo, 3 de outubro de 2010

O DESPACHO E OS CAMINHOS QUE SE BIFURCAM

Sábado a noite tinha um compromisso inadiável com o desmascaramento da farsa do Tio Boonme. No estação Botafogo a exatamente meia noite, no meio da encruzilhada entre a Mena Barreto e a Voluntários, Tio Boonmee encarnaria de novo por uma última vez seu cavalo cinematográfico e de novo nos contaria o seu passado. Não sabia ainda que o verdadeiro encontro dessa noite, por ordem do acaso, seria uma volta ao ponto de origem, onde toda a farsa começou.

Saí de casa com uma antecedência de três horas, ignorando o fato de que pessoas dormiam na fila para essa sessão única. Uma tempestade enegrecia o céu e anunciava o destino trágico do herói. Ouvia gritos esparsos e solitários de alegria. Só podia ser mais um mal presságio. O Botafogo fazia um gol em um combalido flamengo. Mesmo assim, apesar dos avisos, e ciente da tormenta que antecede a glória, o herói seguiu seu destino com seu caminhar trôpego.

Não consegui nem a poeira do último ingresso do filme. Assumi minha errância e estupidez mesmo, e comprei ingresso para um filme com a sessão próxima à do Tio Boonmee. Imaginei pelo menos presenciar a agitação exotérica e orgíaca em torno do grande evento.

Faltavam mais de duas horas para a minha sessão e fiz o que era natural e fui beber a errância e as mágoas futebolísticas. Procurei algum rosto conhecido na multidão, e sem um ombro amigo para reconfortar sentei em um bar onde pudesse exercer a solidão sem ser importunado.

O fato é que logo fui salvo do abismo dos sem ingresso e sem amparo. Não, não apareceu nenhum ingresso, mas um grupo de amigos dispostos a compartilhar minha errância etílica e eliminar a aparente solidão noturna. E não é que no meio dessa malta que bebia, segundo orgulhosamente me informaram, a mais de 24 horas seguidas estava o grande Simplício, que de simples não tem nada.

Ali o herói sentiu que a obra do acaso era um capricho do destino. A tempestade espessa e cinza pairando sobre as nossas cabeças como uma barriga de asno se desfazia. Há quase duas semanas atrás, em uma conversa com esse mesmo Simplício, que agora aparecia difuso pela minha embriaguez, surgiu a ideia desse malfadado e irresponsável blog. Não me lembro quem teve a ideia original, mas em algum momento percebíamos que um (des)guia, feito de desvios, era o que faltava para (des)conduzir as pessoas pelo labirinto do festival. E lá nessa noite que se tornava diáfana, estava o Simplício com sua pose de Minotauro tropical e bêbado.

E o Simplício assumia em forma de escracho, sem saber, o papel oracular que esperava encontrar essa noite no Tio Boonmee. E, num inverso avacalhado, o oráculo narrou algo do seu passado. Nos contou em seu tom bufo peculiar o que até então é a sinopse de filme mais bonita do festival. Aviso logo que o filme não passará mais e que tomei a liberdade de não checar a sinopse original. Melhor ficar com a versão poética do Simplício, mesmo que esteja mentido descaradamente.

O filme é o NOSTALGIA DA LUZ, do renomado diretor chileno Patricio Guzman. Eis a sinopse genial: no deserto do Atacama um grupo de astrônomos busca na imensidão do céu pistas de vida extraterrestre. Enquanto isso, na galáxia seca da areia do deserto, um grupo de mulheres busca vestígios de ossos humanos de parentes vítimas da ditadura chilena. A oposição das imagens é linda. No mesmo lugar, o deserto, vasto por natureza, um grupo olha o céu e as estrelas, outro o chão e os ossos dos mortos. A busca pela vida nas galáxias, e a busca pela morte na terra. Na mesma imensidão o encontro da vida e da morte, do etéreo e do horror, do homem consigo mesmo. E como frisou o nosso oráculo – “o mais louco era que tanto os astrónomos como as mulheres buscam reminiscências do passado. Um a luz que quando chega até nós já é uma imagem de algo que já passou, muitas vezes de uma estrela que já morreu. O outro busca os vestígios da morte, do horror do passado que está enterrado nas areias.”

Me desculpe o Tio Boonmee, mas com esse olhar poético sobre o passado, mesmo diante dos horrores, achei que a noite já estava ganha e desisti de vez da pajelança sem nenhum remorso. A errância tem dessas coisas, como tem as encruzilhadas. São caminhos que se bifurcam e se abrem ao mesmo tempo. Que fique a lenda do Pai Boonmee, que fique a lenda do Simplício. 

Roberto Robalinho    


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