quinta-feira, 30 de setembro de 2010

COMO É BOA NOSSA EMPREGADA

Um desavisado que descobrisse que, além de A Empregada, Im Sang-Soo também realizou um sugestivo A Última transa do Presidente pensaria de bate-pronto: "trata-se de um pornochanchadista coreano". Nem tanto, nem tão pouco. A empregada em questão não faz juz às monumentalidades apoteóticas e sambaleônicas de uma Adele Fátima, mas com certeza seria capaz de fazer Pai Boonmee prever o porvir em outras freguesias.

Um filme do subgênero Coreano Clássico Narrativo.Oriental não-contemplativo. Desconfiava que já tinha visto alguma coisa dele. Horas antes, no trabalho, meu pernonal IMDB informa dos filmes anteriores de Sang-Soo, que aqui, pra simplificar a minha vida de cronista de festival, chamarei carinhosamente de Samsung. Memória também é esquecimento. De uns tempos pra cá descobri a liberdade de não lembrar. Toda vez que isso acontece me recordo (ou me esqueço) de que em anos anteriores via filmes a Bangu (sempre o futebol!). Poucos são os que ficam. Aos laureados com a minha capacidade mnemônica, chamo-os de fundamentais. Samsung não figurava entre eles. Pelo menos até então.

Estou confortávelmente instalado na minha poltrona enquanto espero a sessão. O diretor chega como um lutador de boxe, falta-lhe apenas o roupão e o treinador vociferando atrás, "protege a guarda! protege a guarda!". A bela alvinegra que apresenta a sessão diz não saber se Samsung vai apresentar o filme em Inglês ou Coreano. Ele, pândego como os bons, saúda a plateia num suculento e gorduroso brasileirês: "Boa Noite". É o suficiente para angariar a minha simpatia.

É um filme de mulheres. Elas brilham, excitam, revoltam, até chateiam. O personagem masculino do filme é um mero detalhe. Sua canastrice dá exata dimensão de que veio ao mundo com a mesma função de todos os seus pares: ver as meninas e nada mais nos braços. Almodovar, Hitchcock com ares de Gilberto Braga. Parece pouco elogioso? Um tanto sarcástico? Para alguns, talvez. De certo não para aqueles que, como eu, curtem um melodrama classudo e rasgado.

Roberto Souza Leão

MOEDA DE TRÊS FACES

Chapeuzinho me mandou uma mensagem. "E quem diria, o improvável transforma-se em real. Há inteligência no mundo animal". E eu penso, uau! Mas a vida não é assim tão rima fácil, meus caros meia-dúzia de corajosos leitores. Eis o término:
"De qualquer forma, gostaria que o nosso quarto encontro não fosse no Cine Odeon... afinal, nem só de documentários inteligentes (ou nem tão inteligentes assim) vive um mineiro cineasta. Gostaria que, no próximo encontro, eu pudesse levar doces para a vovozinha, mas, é claro, com a sua ilustre companhia!"
Ou, usando a tecla SAP, se eu errar no quarto encontro, a frase acima transmuta em meu epitáfio. 
Bem, chegamos quase no meio do primeiro turno do festival. De, deixa eu ver, uns 130 filmes disputados, venci 2 longas documentários, mais seus dois respectivos curtas. Meu aproveitamento é compatível com o do meu Galo. E a pressão aumentou.
Abro o guia oficial do festival, já que o nosso não aponta nenhum caminho. Tenho pelo menos uma pista: nada de Odeon! Nhaca, terei que vencer na casa do adversário.
Pesco um filme do rio caudaloso. Um peixe, chinês, chamado: 'O Ültimo Trem para Casa'. Se a alcunha fosse 'Wanda', escolha certa. Pela sinopse, documentário de dois velhinhos casados que se "debatem por um bilhete para a viagem de 50 horas até sua cidade, onde anseiam por encontrar a filha Qin, deixada com a avó há 16 anos." Melhor filme num festival de documentários em Amsterdã. É, não deixa de ter certo pedigree. Mas Chapeuzinho irá gostar de outro documentário? Devo ter certas fixações, viu.
O segundo pré-escolhido: 'Líbano'. Vencedor do Festival de Veneza! Ah, todo cinéfilo é meio Serra Pelada, com seu fetiche reluzindo ouro. Mas o filme é de guerra, com os soldados personagens "tentando não sucumbir à claustrofobia" em meio a "uma terra arrasada, repleta de corpos e desespero". Éééé!, perfeito para um ataque romântico do lobo.
Terceiro risco, una película hermana. 'O Homem do Lado'. Sinopse divertida, em que um mauricinho argentino fica fulo com um buraco na parede aberto pelo vizinho, para construir uma janela de frente à sua casa. Hum... Melhor fotografia em Sundance. Paradoxo é que não gostei nem um pouco das fotos still no site do festival. 
Ah, que essa escolha tá tão chata quanto esse post. E tensa. Não me pauto agora por estéticas, narrativas, contemporaneidade. Quero apenas chegar ao coração da Chapeuzinho. Caminho que trilho sem faro e completamente cego. Mas como sou lobo resoluto, ligo pra moça, leio para teus ouvidos de carmim as sinopses. E, da tua boca de amora, um "Decida-se!"
Eita..., agora me ocorreu uma quarta face da moeda. "próximo encontro", "levar doces para vovozinha", "minha ilustre companhia"... será um eufemismo singelo de "Nada de cinema desta vez, porra!"? 
Ai, meu reino interno da Dinamarca!


Ver ou não ver, pois agora virou questão.


Lobo Mauro

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A DEFESA DE PAI (TIO) BOONMEE

Há um provérbio tailandês que diz: mais vale um pássaro na mão do que um voando sobre a sua cabeça. O que eu quero dizer com isso, sei lá! O que queria mesmo é contar a minha versão da história que andam difamando por ai.
Cheguei no Brasil após longa e cansativa carreira internacional e fui logo sendo retido na polícia federal. Entre os interrogatórios de praxe tive um sono profundo e uma revelação que mudou a minha vida. Sonhei que o interrogador era um papagaio falante que fumava um charuto. Ele me deu uns sopapos na cara e foi logo dizendo – Queres beber, cantar asneiras no esto brutal das bebedeiras que tudo emborca e faz em caco? Se pergutarem: que mais queres, além de versos e mulheres? Vinhos!...o vinho que é meu fraco! Evoé baco! Se não fossem as penas e o bico diria que era um poeta maldito.
Depois disso o papagaio saiu do puleiro e me guiou por um corredor longo até um quarto. Lá dentro uma mulata deitava o seu corpo nu em uma cama. Tinha uma rara beleza, daquelas que a gente só vê em filme. O papagaio então cuspiu o charuto e foi andando até a mulata. Chegou bem perto de sua vagina, deu uma última olhada para mim e disse – O Brasil é o país do futuro! O último é a mulher do padre – deu duas piruetas e mergulhou dentro da vagina.
Acordei assustado e percebi que esse negócio de ficar revelando o meu passado em filme tailandês laureado não fazia o menor sentido. Na verdade era muito solitária essa vida engaiolada na tela de cinema. Todo dia era a mesma chatice. Subornei os guardas com o resto do dinheiro da palma de ouro e parti para as ruas da cidade. O resto é lenda! Quem quiser saber que me procure. Agora me dedico às adivinhações e em trazer a pessoa amada em três dias.
Aguardo ansioso pelo carnaval e só volto ao cinema se for para atuar numa pornochanchada!        

Ex tio Boonmee, atual Pai Boonmee

terça-feira, 28 de setembro de 2010

AS ETERNIDADES INSTANTÂNEAS

Ver, eis a decisão.

Mas confesso estar deveras preocupado. Meu Galo despencando do poleiro, talvez por minha culpa. Afinal, sorte no amor. Assim interpreto. Pois o que uma Chapeuzinho estaria fazendo ao lado do Lobo, num terceiro encontro de dias consecutivos e indo para uma segunda sessão de outro documentário brasileiro?
Definitivamente, meu time vai pra segunda divisão caso persista minha sorte coronariana. Não há dúvidas! Qual sacrifício, pois, escolherei sofrer: a heresia futebolística ou uma paixão natimorta? Não decido, mas jogo com o destino e flerto com a sinceridade: "Boneca, desta vez não ganharemos convite para entrar." Mas a fé inabalável da Chapeuzinho me assusta: "Quem sabe você não consegue com outro amigo famoso?" Fé ou sua ironia raio-x da minha falastrice: "Olha ali dentro, aquele cara do Sportv!" Olho. É o Smeagol. Ai, meus pecados!
Mas eis que vem a teoria infalível de meus amigos rocinantes querendo se comprovar: para toda Lei de Murphy, há uma reação contrária e benévola: a Lei de Joaquim. Pois é, Joaquim aparece travestido de minha amiga, Andrea Capella, que se achega a mim depois do meu aceno. "Mauro, você veio ver meu curta!"
Mas o plano de Joaquim não cobre minha manezice: "Seu curta?" Pronto, a gafe dada de bandeja pra meu esquartejamento mais que justo. Dá pra se notar o quanto sou um cineasta-cinéfilo engajado. E tá lá a Andreinha, num sorriso sapiente. "Você veio pra ver futebol, né? Tudo bem. Mas tá aqui o convite pra você." Sem breguice, fiquei emocionado. E a farsa sobrevivia. Até quando, não sei. Rogo que até depois da Chapeuzinho se ver livre dos doces de sua cestinha.
É, a Andrea tinha razão. Fui lá pra ver 'Mario Filho'. Mas estou cá pra falar do curta dela. Quer dizer, do que ele me suscitou. Afinal, além de cineasta vadio, sou péssimo crítico. E o documentário do Mario Filho foi um gol contra. Dou azar até em jogo dentro de cinema. Com a fotografia mais confusa que o meio campo do meu time, a narrativa mais insossa que a desculpa do LuxemBurro diante de mais uma derrota do Galo, e a glorificação masturbatória tão sacal quanto a que Kalil (infelizmente, presidente do meu Galo) goza de si próprio, o filme só fica bom quando termina. Não, não é uma piada. Nos créditos finais,  gol de placa, com um repente dos entrevistados puxando cada qual o Mario Filho pro teu patriarcado clubístico. Deixasse só os créditos finais (com créditos e tudo), e essa obra se tornaria o curta mais ousado, divertido e genial do Festival.
Pois é. 'Instantâneos'.  A história do último fotógrafo de bares na Lapa. Tá assim, na sinopse. Mas o filme, de instantâneo, não tem nada. É longo, um curta eterno. Não falo da duração dos planos. Nada disso. Mas o fruir dele diz algo do tempo. Algo que não escuto, bem verdade. Certos filmes têm uma diegética pouco porosa pra que minha muito gordurosa intelectualidade consiga atravessar. Simplesmente, não alcanço o conceito. Se muito, o persigo. Mesmo assim, sei lá, alguma coisa mexeu cá dentro. Seja porque estou do lado de uma pessoa pela qual desejo muito que seja, digamos, porosa aos meus escassos, mas sinceros encantos. Ou talvez por outra pessoa que encontrei, duas vezes, antes do Odeon.
Uma da tarde, fui pra comprar os ingressos (que claro, não consegui) e aproveitar pra pegar meu yakissoba dominical no chinês lá perto do cinema. Santo yakissoba, baratinho e rende pra janta. Mas, torto que sou, acabei passando pela Senador Dantas. Rua deserta, a não ser por uma moradora de rua, sentada no chão e encostada na parede de um prédio. Uma faixa cuidadosamente amarrada na cabeça e um batom vermelho passado sem borrões. Segura um canudinho, como um microfone. Passo por ela. Uma entrevista com alguma Hebe Camargo imaginária: "Eu cheguei na casa dele e ele achava que eu tinha que dar."
Continuei caminhando. Quase gargalhando. Mas um riso com verniz de choro. O rosto daquela senhora, de uma harmonia e calma de Sidarta Gautama me impressionou. Quem era aquela mulher com cara de beata? Não, beata tem cara de louca. E aquela louca tinha cara de santa. Uma santa que trepava. Quais riquezas nos privava aquela mulher? E o fotógrafo lambe-lambe ali, revivendo em 24 instantâneos por segundo na tela do Odeon, me fazendo não entender completamente o filme, mas me entranhando de uma emergência afetiva absurdamente curiosa. Quem é esse fotógrafo que não mais caminha pela Lapa? Quem era aquela mulher, sentada na Senador Dantas, na mesma posição e cara, quando passei por ela pela segunda vez, às 3 horas da tarde? Quem é essa Chapeuzinho a meu lado,  e a quem rogo me conceder conhecê-la de novo pela primeira vez, num quem-sabe-quarto-dia? Somos sozinhos no mundo. O dente que dói em mim, só dói em mim, mesmo você sabendo da dor que já doeu no seu dente. Caminhamos pelo mundo solitariamente acompanhados. O outro. Quem é o outro? Meu tio vai chorar comigo a queda do meu Galo pra segundona. Quem é meu tio? Não sei. Mas quero chorar junto dele. Somos cada um, universo. Cada tempo, eternidades. Construímos pontes com o ar que nos separa do outro e damos um passo a frente, sempre em falso. E cada falso passo ao outro,  uma dança com o outro. Juntos, solitários. Universos paralelos que se encontram, pela geometria, só no infinito. Existe cinema após a morte?
Aperto a mão da Chapeuzinho.

Acho que estou precisando trepar.

Lobo Mauro 



segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ESSE FILME NÃO É UM A UM

Nesse último domingo chuvoso não fui ao Maracanã. Tão pouco ao Engenhão, arena a que nos condenaram pelos próximos anos.
Guardei os foguetes, enrolei as bandeiras e caminhei bovinamente rumo ao cinema para assistir a... Mario Filho, o criador das multidões (de Oscar Maron).
O bom leitor já deve ter adivinhado que vira e mexe o futebol vai brotar nas entrelinhas de um blog que devia ser sobre cinema. Respeitamos as nossas verdadeiras obsessões.
Aos que nunca foram mordidos pelo bichinho do torcedor e acham todo esse engajamento ‘uma absurda perda de tempo dessa gente alienada’, peço desculpas pela profusão de metáforas boleiras que vão tomar conta do resto do texto. Não consegui resistir à óbvia tentação de fazer um paralelo entre a experiência da arquibancada e a da poltrona de cinema em um filme sobre o maior cronista da pelota.
Então, taí o que você queria (ou não)!
Primeira surpresa da partida. O jogo preliminar é melhor que o principal. O delicado e preciso curta da Andrea Capella foi bem mais interessante do que o longa que veio a seguir. Instantâneos é um sutil ensaio sobre a duração, o tempo e outras questões profundas que não cabem no raso desse meu texto que bate na canela. Deixo as boas críticas pra gente mais inteligente.
Quanto ao longa, meu amigo Roberto tem razão quando diz (inspirado no próprio Mário Filho) que uma partida de futebol pode entrar para a história pelos seus minutos finais. Mas acho que essa regra não vale pro cinema.
Durante toda a projeção de Mario Filho, a gente é obrigado a assistir a uma modorrenta narrativa feita de uma série de toquinhos laterais e recuos de bola que só um Parreira poderia se orgulhar de ter inventado. O filme gira, gira e não chega a lugar nenhum. A vontade na platéia era gritar: “Verticaliza, desgraçado!” “Chuta, pelamordeDeus!”
Aliás, se a gente pudesse gritar no cinema a coisa ia ficar bem mais divertida. “Bota um ponta, Oscar!”
Mas nem isso resolve. Quando o filme tenta alguma firula o negócio fica ainda mais estranho. É como se tivessem escalado o Denílson na seleção da Suíça. Não cola.
Na falta dos apupos da torcida, as cabeças pendentes nas cadeiras davam a medida do efeito do filme. Tudo fazia lembrar um tremendo zero a zero.
Eis que, já nos acréscimos, esperando o apito do juiz, surge o grande lance. O filme consegue, numa jogada improvável, reinventar o Fla-Flu do coração de Mario Filho. E as multidões despertaram já nos créditos finais.
Realmente genial e memorável. Mas o blasfemo filme de Maron contradiz a teologia boleira cujo Gênesis rodriguano adverte: o Fla-Flu acontece antes do nada. O Fla Flu começa 40 minutos antes do Big Bang. Não depois do juízo final.
Confesso que a deliciosa montagem sobre o verdadeiro time de coração do Mario Filho vai render uma boa conversa de boteco. Mas desconfio de um filme que funcionaria melhor numa edição dos grandes momentos da rodada. Com direito às boas piadas do Tadeu Schmidt e à ‘voz marcante de Léo Batista’.

Aurélio Aragão

A DESCOBERTA

Penso que diante do relato luxurioso do amigo Robalinho, Tio Boonmee finalmente conheceu o Mal dos Trópicos.

Roberto Souza Leão

TIO BOONMEE AGORA VÊ O FUTURO

Parece que as ciganas das marrecas deram um jeito no pobre do tio Boonmee. Depois de uma noite oracular regada a perversões impublicáveis e muitas doses de caipirinha o tio largou esse negócio de cinema. Não vai mais contar o seu passado em um filme tailandês. Dizem que abriu uma banca na esquina da Uruguaiana com a Nossa Senhora do Rosário e agora atende por Pai Boonmee. Traz a pessoa amada em cinco dias e prevê o futuro, número da sorte e resultado de futebol. Depois das ciganas largou o passado definitivamente e agora só lida com o futuro. Pois é os “boonmee” tempos acabaram!

Roberto Robalinho

O FURO DO TIO

Ao que parece Tio Boonmee não recordará suas vidas passadas amanhã no Odeon. As informações que chegam dão conta de que Tio Boonmee foi surpreendido por uma trupe de ciganas ninfomaníacas que fazem ponto na Rua das Marrecas. O ataque teria acontecido no sábado a noite, quando Tio Boone voltava do samba da Ouvidor.
Esperamos que Tio Boonmee volte o quanto antes para que possa socializar suas memórias conosco.

Roberto Souza Leão

AOS 45

Meu velho sempre dizia que em matéria de Botafogo é sempre bom esperar o apito final. Sinto às vezes que isso também vale para o cinema. Hoje foi dia de comprovar as duas teses.

É preciso um árduo trabalho de auto-convencimento para sair de casa às 14h, numa tarde que conjuga chuva e ressaca. Ainda mais quando a ressaca além de física é também moral. Mas a vontade de encontrar os comparsas e assistir ao filme da amiga Andrea Capella valem o esforço.

Mas ninguém sai de casa para assistir a um filme sobre o Mario Filho sem que algo de extraordinário aconteça. Ao mitômano, o mito. E ele aparece cercado de louras esculturais e morenas rebolativas. Caminhando na minha direção, lembra Henry Fonda em direção a câmera na lembrança dolorosa de Charles Bronson em “Era uma vez no Oeste”. Baixo, tranqüilo e marrento. Ele anda com as pernas levemente arqueadas e de um jeitão meio displicente. Um andar chato. Quando enfim tirei os olhos da loura que acompanhava a comitiva, pude reconhecer que quem sentaria no melhor galeto da Tijuca era ninguém menos que Romário. Às tardes de domingo para o outrora gênio na pequena área é dedicado a um outro tipo de corpo a corpo.

Mas o tempo urge. A pouca empolgação do amigo trilheiro diante do mito que acabara de sentar a minha frente me obriga a seguir em frente. Precisava cumprir minha rotina diária de atrasos. Cheguei a tempo de pegar os minutos finais de “Instantâneos”. Pensativo diante do belo registro do fotógrafo errante da Lapa, pergunto ao amigo do lado: “O Gaúcho está na sessão?”. “Morreu há alguns meses”. Resta o consolo de ter sido registrado uma vez pela elegante figura.

A projeção do longa sobre Mario Filho decepciona. O recurso da autoridade não revela o Mario Filho mais interessante. Um João Havelange protocolar, um Sergio Cabral despojado (Ufa! Dessa vez não teve Nelson Motta!), o documentário transita trôpego entre um registro mais livre num esboço ensaístico e um relato historicizante. No meio de tudo, não consegue ser nada. Resta o enfado de um narrador sublinha desnecessariamente a dramaticidade do texto de Mario Filho. As imagens de arquivo revelam um Luxemburgo aguerrido, um Leônidas envelhecido e um Mazaropi azarado. Mas ao final da projeção, o imponderável. Num depoimento histórico do neto, se revela um Mario Filho que o filme deixou de lado. Um Mario Filho que estava latente na fala de Carlos Heitor Cony, mas que era sempre recolocado a sua condição de Gilberto Freyre do esporte Bretão. Uma pena. Tivesse o filme descoberto que o personagem acontece nessas entrelinhas, teríamos um belo filme. Aos 45 minutos, uma luz no fim do túnel, breve, mas intensa.

Filme devidamente debatido, argumentos expostos, os amigos vão aos poucos deixando o bar onde se sentaram para decidir, entre outras coisas, o nome deste blog. Uma incômoda sensação de que deixei o gás ligado não me deixa relaxar. Não posso explodir a minha residência com tão pouco tempo. Mas o amigo, que me dera a triste notícia do falecimento do Gaúcho espera o momento certo para desferir um golpe final. “Quer ver você parar de pensar no gás do banheiro? O Atlético-PR acabou de empatar com o Botafogo.” Incrédulo fui ao bar do lado e me certifiquei da tragédia. Aos 45, a estrela solitária já não brilha tão intensamente. Ao menos a vizinha de baixo pôde fazer o seu chá de carqueja sem explodir a vizinhança.

Roberto Souza Leão

DIÁRIO DE UMA BUSCA AMOROSA

Era pra ser sexta-feira, dia 24. Mas só deu na segunda, madruga, dia 27

Coisas estranhas acontecem no meu reino interno da Dinamarca. Depois de matar a primeira reunião editorial tardia deste Guia de Cego, cabulando também sessões do festival pra tentar uma quixotesca conquista de uma paixão morena, num primeiro encontro na boate Six, lá na rua das Marrecas (afinal, meu Galo tá indo pra segunda divisão e exijo, pois, a contrapartida da sorte no amor), recebo um email inusitado. E da VideoFilmes e companhia! É, estou tirando onda. Pensando bem, não passa de uma marolinha, mas que se configurou numa chance extraordinária d'eu camuflá-la em tsunami aos olhos oblíquos da minha Chapeuzinho Vermelho.
Eis a mensagem: "Tambeline Filmes, Les Films du Poisson e Videofilmes convidam para a Sessão de Gala (ai, meu Galo) da Première Brasil do filme (...)"

corte narrativo-mnemônico: nesta hora pensei que, sei lá, o João Moreira Salles olhou em alguma lista escusa e mandou o recado: 'O Mauro Reis tem que ir!'. E que, claro, o tal era meu homônimo mais famoso (podem digitar no google):
um ator.
Pornô.
Gay.

Ou seja, seria barrado na entrada e minhas recém-nascidas penas de pavão defenestradas diante da Chapeuzinho Vermelho tropical. Ai, meus pecados!
Mas a mensagem assim continuava: "(...)'diário de uma busca', de Flavia Castro. Sábado, dia 25 de setembro, às 17horas, Cine Odeon"
Uau! Nossa, que gesto generoso. Flavia e eu (hora do auto-merchandising) vencemos um edital de roteiro de longa da Secretaria Estadual de Cultura e, sorte minha, trocamos alguns emails na tentativa de desbravarmos a burocracia de uma prestação de contas. E lá estava ela, prestando esse imenso ato de carinho pro mané aqui.
Oba, dava pra continuar com meu propósito de mentir descaradamente pra minha amada vítima: eu era o tal! Mas, carambolas, quem teria a idéia de, num segundo encontro amoroso, levar sua pretendente pra assistir um documentário brasileiro? Só uma besta quadrada como eu, né. Tremi. Mas não dava pra regatear. Tava lá o tapete vermelho, cor do meu sangue pulsante de neuroses derrotistas, como uma língua a engolir meus sonhos de boa-venturança.
Vixi Maria! E a fila pra entrar parecia uma pororoca de vários afluentes. E eu e a Chapeuzinho ali, a deriva no festival deste Rio caudaloso. Quando finalmente desconfiamos nosso lugar na fila, nos raptam para uma foto promocional. Meu cabelo rasta é ímã pra esses micos. Beleza, pensei, meu naufrágio amoroso estará registrado. Lobo ao mar! Lobo ao mar!
Oh!, destino do Poseidon foi nos colocar em duas cadeiras laterais, nem tão sãos, mas salvos. E, gente! Aparece lá o meu ídolo, Eduardo Coutinho. Aponto pra Chapeuzinho o velhinho, que ela desconhece solenemente. Chega também o João Moreira Salles. Não aponto. Vai que a hipótese do Mauro Reis famoso se concretize?
E começa, antes, um curta de ficção. É... isso pode me ajudar a descontrair a Chapeuzinho. Mas, qual o que! Que nhaca era aquela? 'Simpatia do Limão', um curta antipático sobre uma cartomante farsante. Nunca vi nada tão ruim desde um outro curta também de cartomante, com o seguinte título imbecil: 'Bulbo: parte do eixo cerebrospinal, sede de importantes centros neurovegetativos, como o do centro de controle cardiorrespiratório", que, a propósito, eu escrevi e dirigi. Uma bosta.
Naufraguei-me mais uns centímetros na cadeira, reparando de soslaio o semblante nada animador da Chapeuzinho. Ainda mais quando aparece o personagem Rodrigão, 1 metro e oitenta de canastrice. Fico a imaginar o coitado do Coutinho sendo obrigado a ver aquele cabra marcado pra correr semi-nu, na praia. Eita!
Mas quem nos salva? Flávia Castro, novamente. Filme emocionante, corajoso, bonito e que, outra virtude inusitada, preserva minha tentativa de Don Juan da Carochinha.
De toda forma, pode ter sido por um fio. E fico cá a pensar se arrisco de novo minha possibilidade de amor durante o festival.
Ver ou não ver, eis o que nem sei se é questão.

Lobo Mauro

NÃO TEM NEM CRÍTICA

Não durmo há três dias. Os caninos do meu filho de um ano estão nascendo e parece que, por serem os caninos, o menino está voltando ao estado de natureza. Tenho sacrificado o meu ombro para ele roer e assim se acalmar. Pensei que uma ótima desculpa para tentar salvar o que resta do meu ombro direito seria assistir a um filme no festival. Passei a fera para a mãe e me larguei para o cinema a esmo. É óbvio que não encontrei ingresso para nenhuma sessão. No meio daquele desamparo terrível dos sem ingresso, espécie de limbo cinematográfico, me lembrei da peça de um amigo no espaço SESC Copacabana. Cheguei em cima da hora e, claro, também não tinha ingresso: um ônibus, vinte minutos e lá estava eu de volta ao purgatório. Como a peça era de um amigo, antes que o segurança me agarrasse, consegui chegar à porta e forçar a minha entrada.
Eis a pegada, meu primeiro texto não falará do festival, mas de uma peça de teatro, privilégio de nossa cobertura errática. O maior problema do teatro é que, ao contrário do cinema, não se pode tirar um cochilo, o que no meu caso era um problema muito sério.
Mas vamos lá, a peça chama-se NAOTEMNEMNOME e a realização é da Cia das Inutilezas e Pangéia Cia. Pelo nome da peça começava a desconfiar que o purgatório me perseguia como naqueles pesadelos em que não conseguimos sair do lugar. Impressão desmentida na entrada. Uma sala aconchegante com os atores recebendo o público como se recebem velhos amigos. Confesso que o vinho servido junto com o aconchego ajudou muito na impressão fraterna. Descubro que durante a semana os atores entrevistaram parte do público presente com perguntas variadas, desde coisas bestas como qual é a sua cor preferida a outras mais profundas sobre como gostaria de morrer. Me parece que parte desse questionário serviu de matéria para a construção da peça.
Não há uma encenação clara e narrativa, mas um clima de conversa e revelações pessoais por parte do público e dos atores sobre diversos sentimentos. Mas que diabos é então NAOTEMNEMNOME? Difícil explicar, o nome na sua ausência já diz muito. Talvez não haja explicação mesmo. A peça, não peça, fala daquela coisa que faz a gente gente. Daqueles momentos, felizes ou tristes, que de repente em um átimo nos faz sentir vivos. Quando de repente nos apaixonamos, quando perdemos alguém, quando somos humanamente bestas, ou humanamente profundos. Principalmente daquela coisa que move a gente nessa travessia pelo mundo. Aquilo impalpável que o Guimarães Rosa disse – o sertão é o vento. E mais importante, a peça não nos revela nada, ela apenas tenta compartilhar esse corpo invisível que habita o homem. Compartilhar nesses tempos já é um passo extraordinário. A peça nasce então no encontro dos atores com o público e na troca dos desencontros da vida. Não precisa mais, já tá de bom tamanho.
Saí da peça e voltei para casa, de volta ao meu filho e seus caninos afiados. A madrugada chuvosa e o filho mordendo o ombro enquanto se acalma e adormece nos nossos braços – NÃO TEM NEM NOME.

Roberto Robalinho

domingo, 26 de setembro de 2010

O OFICÍO DO ARTISTA

A decisão de ir a uma sessão nobre da Premiere Brasil significa encarar todos os riscos embutidos no conceito. Grades, seguranças, tapetes vermelhos, câmeras, e uma pequena multidão no esforço de se fingir à vontade com isso tudo. É difícil a vida de artista.

Mais ainda daqueles que tentam ser.

O taxista estranha. “Odeon no sábado à noite? O senhor tem certeza?” Eu: Mais ou menos. Mas as centenas de pessoas que se aboletam na fila exclusiva para convidados parecem mais convictas. O travesti maltrapilho da Cinelândia e os bêbados de última hora se irritam com a invasão do espaço deles. Praguejam contra aquela tropa jovem bem vestida e descolada. Mal sabem eles que a maior parte daquela gente fina, elegante e ligeiramente sincera está ali por dever de ofício. São amigos da cenógrafa, colegas do maquiador, parceiros do trilheiro. Numa platéia ligada por uma corrente de afeto, a palavra de ordem é prestigiar. E torcer para também ser levemente contaminado por esse prestígio. É um pouco por isso que estou naquela fila. Mas como sempre fui muito incompetente nessa função, descubro tardiamente que sem nome na lista ninguém entra. Ou seja, corro o sério risco de me juntar à tropa dos bêbados e do travesti. Por um fio, os amigos me rebatizam com o nome de alguém bem quisto, e eu adentro a porteira dos sorrisos. “Seja bem vindo e boa sessão, Miguel.”

É uma sessão de filmes da Cavídeo, e o anfitrião da noite, Cavi Borges, dá o tom da festa em um discurso emocionado. “Cinema não é sobre dinheiro, mas sobre amizade.” Minhas contas pendentes no banco e meu nome no Serasa endossam a primeira parte do raciocínio. Os olhos marejados de boa parte da platéia confirmam a segunda.

Preâmbulo perfeito para o longa que vem a seguir. Riscado é sobre uma atriz que faz de tudo para conseguir simplesmente ser atriz. Sincero, delicado, sem medo de expor suas fragilidades, o filme tocou fundo naquela tropa de espectadores. Esse pêndulo incessante entre esperança e desencanto é muito familiar para todos nós. Saí do filme matutando se isso era só coisa pra artista ou aspirante ao ofício. Minha mulher e uma querida amiga  (atriz) desqualificaram minha dúvida. “Essa insistência amorosa pelo que se quer fazer é (ou devia ser) a razão de vida de todo mundo. Uma curiosidade absurda pelo nosso próprio desejo. Uma vontade de saber onde é que isso vai dar. É isso que move a gente. Tanto faz se é no palco, no set, na fábrica ou na repartição.” Acho que elas têm razão. Segunda-feira vou ter essa conversa com meu gerente de banco.


Aurélio Aragão

RATEANDO NA LARGADA

Avaliando meus atributos atléticos para encarar essa maratona de filmes, acabo de descobrir que não chego nem a cavalo paraguaio. Tô mais prum pangaré manco, obsessivo e confuso.
Antes de encarar o burburinho ansioso das ante-salas de cinema da cidade, resolvi planejar metodicamente meu percurso nos próximos dias.
Primeiro passo: triagem. Dos “mais de 300 filmes!”, elaborei com todo rigor e critério uma enxuta lista de apenas 93 obras realmente interessantes. Um leque mais permissivo do que o exótico rabo do pavão de Itu. Vai desde o road movie rebolativo da Gretchen, até o Rubber, pneu assassino que já virou o filme fetiche dos cults. Passando naturalmente por todos os nomes orientais impronunciáveis que a crítica de bom gosto consegue soletrar sem nenhum desconforto ou cacofonia. Mesmo que o camarada tenha sido batizado de Weerasethakul. No meio dessa perspectiva que não conhece horizonte, o pangaré aqui empacou.
Pra aumentar a minha angústia, acabo de ler no Globo que meu amigo Ruy Garnier, partilhando a dedicação dos sábios, vaticina que não convém perder nenhum filme da retrospectiva do Jerzy Skolimowski.
Antes que eu comece a chorar em cima dos jornais, decidi correr para o colo da minha mulher, assistir a mais um mau jogo do flamengo e deixar ela decidir que filme vai nos embalar nesse sábado à noite. Quando descobrir, lhes conto.

Aurélio Aragão

NÃO EDITORIAL

Como indica o título, esse não é um editorial. Nossa reunião de pauta foi marcada com alguns dias de atraso e não teve nenhum quorum. Um editor se recusou a ir a reunião pois tinha um encontro com uma morena estonteante. Acreditava que nesta noite se perderia de paixão e não saberia nem o que ia ser de sua vida depois disso. Outro editor decidiu que era melhor ir ao cinema. Este que escreve teve uma noite de sangue, choro, lágrimas e insônia enfrentando os caninos que nasciam na boca de seu filho de um ano. E o único que restou, resignado e sozinho na noite carioca, se entregou a mais uma noitada de álcool e insensatez. Mesmo assim, entre mortos, feridos, e mais um coração dilacerado, resolvemos seguir adiante assim mesmo, erráticos.
A ideia é fazer um blog sobre o Festival de Cinema do Rio de Janeiro. Mas, como já podem notar, nosso caminho é desviante e loquaz. Não se trata apenas de críticas aos filmes, mas de um blog sobre aquele cara que vai ao festival e não consegue ingresso para o filme que queria ver e termina em outra sessão. Ou o cara que não tem saco pra ficar na fila e bebe no bar do lado. A escolha dos filmes será de acordo com as nossas idiossincrasias ou fruto do acaso mesmo. Mais do que o cinema em si, nos interessa uma experiência vadia desse cinema – errante, apaixonada, improvável, embriagada, besta, anárquica, desencontrada. Não buscamos verdades absolutas mas os desvios certeiros: o inexplicável que está no vazio entre uma sessão e outra, entre a tela e os nossos olhos, entre o filme e nossas paixões, entre a vida e a morte.
Convocamos os loucos e sonhadores, incomodados em geral, aqueles dispostos a não encontrarem respostas, mas perguntas às suas angústias, para nos acompanharem nesse devaneio irresponsável. Aos que são desprovidos de coragem e de imaginação, me perdoem o português – que  vão a puta que os pariu!

Roberto Robalinho